RUTH DE AQUINOi
RUTH DE
AQUINO é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA).
Pode parecer incrível para muitos de nós, que vivemos em harmonia
negociada com o outro sexo. Mas, no século XXI, ainda existe ódio sexista,
latente ou escancarado. O que aconteceu na semana passada com a publicitária
paulistana Renata Gervatauskas, de 35 anos, é um triste exemplo disso. Renata
escreveu um post para o blog Mulher 7x7, em epoca.com.br. Contou ter desistido
de um namorado potencial ao escutar dele: “Só falta dizer que lava, passa e
cozinha bem. Vai ser a mulher perfeita. Aí, eu caso”. Ela não gostou da
“brincadeirinha”. Eu também não gostaria. Acharia o cara um bobo.
Em seu texto, Renata defende a licença-paternidade por seis meses,
concedida recentemente no Brasil pela primeira vez a um homem que perdeu a
mulher no parto. É um precedente positivo, escreve Renata: “A gente ainda
confunde o instinto materno com a obrigação de cuidar sozinha das crias”. A
reação da maioria dos homens internautas foi um ataque pessoal, na tentativa de
humilhar as mulheres em geral. “Foi um festival de ofensas gratuitas, que
serviu como espelho de uma sociedade doentia”, disse ela.
Um internauta escreveu: “Feminismo já é um lixo social, se exagerado
então fede”. “Aprendam, animais”, escreveu outro. “Vocês jamais irão se igualar
aos homens. Perguntem às mães solteiras e independentes de hoje, que têm por
volta de 35 anos, se elas não mudariam o jeito f... e independente delas se
pudessem voltar no tempo. Nós, homens, não queremos resto dos outros. Nós
queremos mulheres que nos respeitem como líderes do lar.”
“Qual é o problema de a mulher de hoje fazer tarefas domésticas que o
restante fez ao longo de toda a história da humanidade?”, pergunta um outro.
“Vocês reclamam de barriga cheia. As mulheres não tinham máquina para lavar
roupas, esfregavam tudo na mão mesmo e não reclamavam da dependência dos seus
maridos, porque elas sabiam bem do papel destinado a elas. Vocês hoje só têm o
trabalho de colocar sabão em pó e depois colocar a roupa no varal. Feministas:
vão tomar no olho do c…”
Esses comentários, alguns feitos na covardia do anonimato e outros
assumidos com o próprio nome, não fazem jus à maioria dos homens atuais, que
desejam casar com uma mulher inteira e educar os filhos plenamente. Mas o ódio
nessas reações explica o absurdo número de estupros, a violência doméstica, o
assédio moral, ainda hoje. Explica as Eloás da vida.
É incrível que, em pleno século
XXI, ainda exista ódio sexista, latente ou escancarado
Sou contra a vitimização das mulheres. Não acho as mulheres mais tristes
que os homens – embora a gente reclame mais. Talvez tenhamos nos acostumado a
perceber que nada cai de graça no nosso colo. Precisamos reivindicar, refletir
e discutir. Não acho que o feminismo tenha traído a nenhuma de nós. Movimentos
de emancipação trazem conquistas, não são um manual de felicidade, mas de
liberdade. Liberdade para escolher o que é melhor para cada uma. Não somos um
“blocão” homogêneo. O risco é trair a nós mesmas e aos homens, se continuarmos
a criar nossas filhas como “princesinhas” e nossos filhos como “super-homens”.
Esses papéis só existem na ficção, não cabem numa sociedade moderna, e definem,
desde a infância, expectativas irreais para elas e para eles. Que geram
frustração mais tarde.
Há 180 anos, em 1832, uma jovem do Rio Grande do Norte, Nísia Floresta
Brasileira Augusta, de 22 anos, publicou Direitos das mulheres e injustiças dos homens. Ela casou aos 13 anos e abandonou o marido pouco depois. Voltou à casa
dos pais. Sofreu com o estigma. Era fluente em várias línguas e instruída, num
tempo em que mulheres no máximo sabiam ler e escrever. Teve dois filhos com um
segundo companheiro. Um dos trechos de seu livro: “Se cada homem, em
particular, fosse obrigado a declarar o que sente a respeito de nosso sexo,
encontraríamos todos de acordo em dizer que nós nascemos para seu uso, que não
somos próprias senão para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger
uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos amos, isto é, a eles, homens”.
Uma coisa é a mulher decidir ser mãe e dona de casa em tempo integral.
Se assim é feliz, e seu companheiro também, parabéns. Sorte da mulher que,
hoje, com recursos e instrução, pode decidir seu destino. Pode tentar ser
bem-sucedida no trabalho, no amor e na família – um desafio duro, porém
fascinante. Pode decidir quando engravidar. Pode decidir não ter filhos – e é o
cúmulo que muitos a apedrejem por isso. Pode decidir não casar. Pode decidir se
separar sem que a discriminem. Pode estudar, pode se apaixonar várias vezes,
pode chegar à Presidência da República. É um desconsolo imaginar que ela ainda
pode ser estuprada, discriminada, agredida e assassinada por homens que odeiam
as mulheres.
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